O solidário e o escorpião

Há inicialmente que se definir os personagens desse conto. Eles conviviam e, embora próximos, por suas características, entendimentos e comportamentos divergentes, jamais estiveram do mesmo lado, ou foram da consideração de quem os solicitavam.

Um deles, o solidário, tinha caraterística altruísta, abnegado e disponível para entender as atitudes e as necessidades do próximo, exercendo a  empatia para até se colocar no lugar do outro para melhor sentir as ansiedades dele. Mesmo nas solicitações financeiras o solidário se fazia presente e, dentro das suas possibilidades, socorria o necessitado.

Por sua maneira de ser, o solidário era constantemente convidado a frequentar as rodas sociais, onde era recebido com galhardia e reverência.

O outro se assemelhava ao escorpião. Ao contrário do solidário era fechado em sua toca, onde se alimentava de sobras e sua maior atividade era manter treinados seus filhotes para defenderem, até com a própria vida, o seu ninho e a sua característica de agressor, peçonhento, cujo ataque resulta ao atingido extrema dor, sendo seu veneno muitas vezes causador de morte da sua vítima.

Este último, o escorpião, era protagonista em outras fábulas, sempre figurando do lado perverso. Qualquer solicitação que pudesse provocar qualquer indício de  solidariedade era rechaçada  com contra-ataque veemente.

Foi assim nas fábulas do Escorpião e o Elefante, do Escorpião e do Sapo e até na mitologia grega quando o Escorpião serviu de instrumento para Artémis assassinar o caçador Orion. Contam as fábulas do Escorpião com o Elefante e com o Sapo, em que, tendo sido anunciado que haveria um grande incêndio na floresta, todos os animais deveriam atravessar o rio para se protegerem do outro lado, imediatamente.

Ora, não sabendo nadar, o casal de escorpião, trazendo, como de costume, os seus filhotes nas costas, estava à beira do rio, desesperado. A cada animal que chegava e se jogava tranquilo e confiante para a travessia, os escorpiões apelavam para o espírito solidário de cada um para que os levasse nas costas para a outra margem. Porém todos conheciam o instinto de atacar e ferir dos aracnídeos, cujo veneno colocaria em risco a vida de quem os levasse às  costas. E, a cada pedido dos escorpiões,  seguia-se uma negativa.

Com o evidente e cada vez mais próximo perigo trazido pelo fogo, o casal de escorpiões se encontrava a ponto de cometer suicídio, prática costumeira na espécie quando se encontra em situação de risco irreversível. A curiosidade fez formar um grupo ali na margem, inclusive o sapo que acabara de chegar.

Neste momento chega alguém com comportamento diverso, alguém de característica solidária, um Elefante que se interessou pelo motivo daquele ajuntamento.

Lhe contaram se tratar de um casal de escorpiões pedindo para alguém lhes dar uma carona e os levar nas costas até a outra margem do rio e assim estariam salvos do fogaréu  que se aproximava.

Mas quem concordaria em os levar? Com os perversos nas costas eles estariam vulneráveis ao ataque e certamente morreriam antes de chegarem ao outro lado. Foi a observação do elefante, que do alto da sua sábia paquidermia  monstruosa e nano-cefálica, ao invés de prosseguir com seu caminho e livrar-se do fogo, seu comportamento solidário impôs-lhe dar ouvidos ao escorpião, que, matreiramente, contra-argumentou:

__ Não é  esta a verdade, meu ‘amigo’!

__ Caso nos leve, e eu, minha mulher ou os filhotes o picássemos, inoculando nossa peçonha, morreríamos todos, o senhor envenenado e nós afogados, considerando que escorpião não sabe nadar, não é correto?

__ Sim, me parece razoável e até aceitável, exclamou o elefante, já buscando justificativa para o afloramento da sua solidariedade, seu melhor instinto.

__ Eu também acho isto, coaxou o sapo, igualmente de característica solidária, que acabara de chegar ao grupo e ouvira o diálogo entre escorpião e elefante.

__ Então, para minimizar o risco e exercer também a minha solidariedade, me disponho a levar a metade da família até a outra margem e salvá-los do fogo, mais uma vez coaxando disse o sapo.

Seguiu-se entusiástico bater de palmas e, ao que pareceu, a sena mostrou uma manifestação de amor ao próximo e ausência do interesse próprio.

Lá seguiu o cortejo encabeçado pelo elefante, valendo-se da sua altura, e o Sapo – exímio nadador -, seguidos de extensa fila de curiosos.

Não fosse o desfecho poderíamos definir a comitiva como o desfile da solidariedade.

Ao atingir a metade do rio, em sua parte mais funda, tanto o escorpião que cavalgava o elefante, quanto sua mulher, carona do sapo, enterraram seus ferrões nas partes mais sensíveis das suas montarias.

Considerando a letalidade do veneno injetado e a profundidade do rio todos morreriam conforme previsto, as montarias envenenadas e os passageiros afogados.

Ainda agonizando e indignado com o comportamento dos aracnídeos, o elefante exclamou :

__ Escorpião, por que fizeram essa maldade? Embora sabendo que nenhum membro da sua família sabe nadar, determinou a morte deles, inclusive a sua e dos que estavam praticando um ato de solidariedade, caso meu e do coitado do sapo, que sequer teve tempo para avaliar o risco que estaria correndo em manifestar seu altruísmo, próprio da sua natureza solidária?

Assim se expressou o escorpião, agarrado no lóbulo da orelha do paquiderme, prestes a afundar:

__ Ora meu caro ‘amigo’ elefante, pena que com a sua morte não poderá se valer do ensinamento que acaba de adquirir: eu e minha família somos escorpiões e faz parte da nossa natureza picar e envenenar, não poupando sequer nossos benfeitores ou até a nós mesmos.

No ímpeto de exercer a sua característica de comportamento solidário, muitas vezes a ação vem antes da razão e pode ocasionar o esquecimento da sabedoria milenar de que “o apressado come cru”, ou “é preferível avermelhar e dizer não numa situação, a ter que amarelar sendo obrigado a dizer sim no outro momento”.

Vivemos hoje um momento de reflexão sobre a mensagem desta fábula. Irônica é a sua constatação, pois na verdade a grande maioria cultua valores que nos fazem elefantes, uma questão moral. Na verdade os escorpiões nem são tantos assim. O problema é o risco de muitos morrerem afogados, por impulso da natureza peçonhenta de poucos, que também morrerão!

Paulo Diniz
Presidente

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